No Rastro do Boi #2
Rastreabilidade na COP30, obrigatoriedade adiada no Pará e mais
Encerrada a COP, entramos em um momento em que discursos, regulações e decisões tomadas ou adiadas começam a se traduzir em efeitos concretos para a pecuária brasileira. Nesta edição do boletim buscamos mostrar esse conjunto de movimentos: avanços normativos, mudanças de rota, disputas narrativas e sinais claros de que a rastreabilidade segue como tema central, ainda que pressionado por fatores políticos e de mercado.
Aqui, trazemos uma leitura do cenário que se desenha após a COP 30. De um lado, medidas federais e estaduais avançam em direções opostas; de outro, decisões judiciais e indicadores independentes reforçam a urgência por transparência e controle da cadeia. Também compartilhamos percepções de organizações que estiveram na COP, onde ficou evidente que os debates sobre pecuária, metano e sistemas alimentares estão longe de um consenso.
Brinco do Boi na COP: avanços internacionais, retrocessos domésticos e disputas narrativas no agro
As impressões sobre a COP levantadas na última semana com organizações da sociedade civil que estiveram no evento identificaram um conjunto de tensões que marcaram a participação do setor agropecuário, da sociedade civil e dos movimentos ligados a sistemas alimentares. Para o grupo, a conferência expôs uma divisão clara dentro do agro brasileiro: de um lado, atores que buscaram construir uma narrativa propositiva e de sustentabilidade voltada ao mercado internacional; de outro, setores que se sentiam excluídos do processo e reagiram ao evento com críticas sobre participação, custos e alegações de greenwashing.
Entre as percepções compartilhadas, destacou-se uma sensação de descompasso entre o discurso público e os rumos da política interna, com temas como licenciamento ambiental, controle socioambiental e rastreabilidade fragilizados após a COP, com adiamentos sucessivos de iniciativas que vinham ganhando força em estados-chave - o que contribuiu para um hiato entre o discurso apresentado nos espaços globais e a prática regulatória efetiva dentro do país.
As avaliações também apontaram que a agenda de sistemas alimentares, apesar de ter recebido visibilidade em painéis paralelos, pouco avançou no núcleo da negociação climática. A percepção é que o debate segue dominado por posições altamente técnicas e voltadas aos grandes produtores, com baixa representação de agricultores familiares e pequenos e médios pecuaristas, que são justamente os grupos que mais precisam de apoio para transição produtiva e adaptação no território.
Outro ponto apresentado é a compreensão de que o setor empresarial do agro ocupou grande parte do protagonismo na conferência, inclusive criando seu próprio espaço paralelo na Agrizone. Esse movimento gerou uma dinâmica de competição narrativa: enquanto o setor privado buscava assumir o papel de principal porta-voz do agro, organizações da sociedade civil encontravam menos espaços de incidência direta. A experiência dos participantes que estiveram lá reforçou a impressão de que o ambiente é permeado pela influência econômica de grandes grupos, o que amplia o desafio de disputar sentido político para o debate climático.
vídeo-manifesto No Rastro do Boi exibido no painel “Transparência e rastreabilidade na cadeia da carne: sistema agroalimentares”, durante a COP30
Aprofundando essa percepção, a disputa narrativa em torno da pecuária na COP30 evidencia que o agro buscou se apresentar como setor alinhado à transição climática, usando a Agrizone como espaço de articulação e visibilidade. E o que esse movimento mostra é que o setor está tentando inverter a posição histórica de defensiva, apresentando-se agora como ator central na construção de soluções ao mesmo tempo em que pressiona para minimizar exigências de rastreabilidade, controle de desmatamento e políticas domésticas de proteção ambiental. Houve ainda observações sobre a presença crescente da China na agenda da conferência e sobre como decisões relacionadas a mercados externos acabam ofuscando a importância do consumo doméstico e da governança ambiental interna na equação do desmatamento.
Dessa forma, a leitura que se consolidou é que a COP escancarou duas disputas centrais:
disputa pelo protagonismo da narrativa do agro, entre sustentabilidade internacional e resistência regulatória na prática doméstica;
disputa por participação, marcada pela assimetria entre grandes grupos econômicos e atores da ponta da cadeia;
Mas mesmo diante desse contexto, ainda existem caminhos estratégicos ao considerar que a presidência brasileira até a próxima COP abre oportunidades para reposicionar a agenda de sistemas alimentares, ampliando alianças com movimentos sociais. E ainda ao considerar que as soluções agroalimentares já existem no país, sobretudo entre povos e comunidades tradicionais cujos sistemas produtivos oferecem respostas concretas aos desafios climáticos e ambientais.
Nesse cenário, fortalecer análises críticas, ampliar frentes de colaboração e identificar pontos reais de incidência serão passos fundamentais para os próximos anos, especialmente para garantir que o debate sobre pecuária, metano e sistemas alimentares não fique restrito a agendas paralelas, mas se converta em política pública concreta dentro do país.
Pará adia obrigatoriedade da rastreabilidade bovina e questiona mercado internacional
O governo do Estado do Pará assinou um decreto que altera o início da obrigatoriedade da rastreabilidade individual de bovinos e bubalinos, postergando a exigência para 1º de janeiro de 2031. A medida foi anunciada durante um evento da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa), em Belém, e substitui o cronograma anterior, que previa a implantação da identificação individual já a partir de 1º de janeiro de 2026.
O decreto suspende a implementação do Sistema de Rastreabilidade Bovídea Individual do Pará (SRBIPA) na data originalmente prevista e transfere a exigência de que os animais sejam identificados antes de qualquer movimentação para o novo prazo de 2031. Apesar do adiamento, o Pará ainda estaria à frente do calendário nacional de rastreabilidade, que, pelo Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (PNIB), prevê a obrigatoriedade em todo o país apenas a partir de 2033.
Ao justificar a decisão, Barbalho criticou a postura do mercado internacional em relação à carne rastreada. Ele afirmou que o Estado avançou na preparação de um sistema pioneiro de rastreabilidade para demonstrar a integridade da produção pecuária paraense, mas que esse esforço não se traduziu em abertura de novos mercados nem valorização da carne rastreada nos principais destinos consumidores. Segundo ele, sem sinais claros de que compradores externos estão dispostos a pagar pela rastreabilidade, não seria justo impor a exigência agora.
Apesar de não ter sido citado especificamente, o adiamento da obrigatoriedade da rastreabilidade é reflexo direto do novo contexto internacional após o adiamento da entrada em vigor da EUDR, que reduz temporariamente a pressão regulatória sobre países exportadores. A mudança na União Europeia alterou a percepção de urgência organizada em torno da rastreabilidade, o que leva Estados e cadeias produtivas a calibrar seus cronogramas internos conforme o ritmo das exigências externas.
O adiamento da obrigatoriedade da rastreabilidade bovina no Pará também ocorre em um contexto de discussão mais ampla no setor. A rastreabilidade foi tema recorrente nos painéis na COP30, onde entidades e associações defensoras da rastreabilidade a apresentaram como ferramenta de sustentabilidade e transparência. No entanto, produtores locais chegaram a manifestar que o ritmo inicial de implementação era acelerado, o que poderia deixar pequenos e médios pecuaristas despreparados para cumprir as exigências no curto prazo. A nova data de 2031 deve abafar as discussões, mas é fato que o tema segue polarizado.
Confira matéria da SEMAS - Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade
Justiça Federal obriga Adepará a publicar dados detalhados de GTAs
A Justiça Federal aceitou pedido do Ministério Público Federal e determinou que a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará) passe a publicar, de forma detalhada e periódica, os dados das Guias de Trânsito Animal (GTAs) emitidas no estado. A decisão judicial estabelece que as informações sobre movimentação de animais não podem ser tratadas como sigilo de dados pessoais e que a transparência atende ao interesse público e às exigências legais de acesso à informação.
A sentença determina que a Adepará disponibilize em sua página eletrônica dados que permitam identificar a origem, o destino e a quantidade de animais movimentados, bem como o período e outros elementos relevantes para a rastreabilidade e o monitoramento da cadeia pecuária no Pará. De acordo com o entendimento da Justiça, o argumento de que as GTAs seriam “informações pessoais sensíveis” não se sustenta, por se tratar de dados de interesse coletivo relacionados à produção agropecuária e à governança ambiental, sendo essenciais para subsidiar políticas públicas de fiscalização, controle e proteção ambiental.
Além de ordenar a publicação de um cronograma de implementação das medidas determinadas e caso os prazos não sejam cumpridos, a Justiça poderá impor sanções e medidas complementares para assegurar a transparência.
A ação civil pública integra o projeto Transparência das Informações Ambientais, conduzido pela Câmara Ambiental do MPF. O projeto tem como objetivo avaliar o cumprimento das obrigações legais de transparência ambiental por órgãos federais e estaduais em todo o país e promover padrões mais amplos de divulgação de dados que impactam políticas climáticas, ambientais e agropecuárias.
A decisão representa um avanço no debate sobre rastreabilidade e acesso público a informações na Amazônia.
Veja na matéria do Ministério Público Federal.
Lançamento do Radar Verde 2025 expõe avanços e limites do combate ao desmatamento na cadeia da carne
Foram divulgados os resultados do Radar Verde 2025, indicador independente que avalia o compromisso de frigoríficos e grandes varejistas com políticas e práticas para eliminar o desmatamento da cadeia da carne bovina na Amazônia Legal. O relatório deste ano analisou 151 grupos frigoríficos que detinham 194 plantas até 2024, responsáveis por cerca de 96% dos abates na região, e apontou avanços em transparência, mas também lacunas estruturais que ainda expõem o setor à pressão ambiental e de mercado.
Os resultados mostram que, embora mais empresas estejam publicando auditorias e informações socioambientais, a maioria dos frigoríficos ainda não comprova controle efetivo sobre seus fornecedores na Amazônia, especialmente os fornecedores indiretos, fazendas onde os animais nascem e passam as primeiras etapas do ciclo produtivo. Esse elo permanece como o principal ponto cego da cadeia e sua falta de monitoramento mantém o risco de entrada de gado oriundo de áreas com desmatamento ou outras irregularidades.

O índice Radar Verde considera tanto as políticas declaradas pelas empresas quanto a execução dessas políticas por meio de auditorias independentes e evidências públicas. Neste ciclo, houve avanço na divulgação de auditorias: o número de frigoríficos que tornaram públicos resultados de auditorias independentes mais do que triplicou, de 13 em 2024 para 41 em 2025, representando 57% da capacidade total de abate na Amazônia Legal, ante 37% no ano anterior. Esse crescimento na transparência reflete, em parte, os efeitos de instrumentos como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne, conduzido pelo Ministério Público Federal, que exige auditorias e divulgação pública de dados socioambientais.
A avaliação de varejistas (as 100 maiores redes supermercadistas do país) traz um quadro similar: 97% permanecem com controle muito baixo sobre a cadeia da carne, com apenas três empresas (Assaí, Carrefour e GPA) publicando auditorias sobre fornecedores diretos, e nenhuma mostrando controle de fornecedores indiretos.
O Radar Verde destaca ainda que, embora a transparência tenha avançado, isso não se traduziu em controle efetivo da origem do gado em toda a cadeia, o que continua sendo um gargalo para a mitigação de riscos ambientais e para a conformidade com demandas regulatórias e de mercado.
A avaliação reforça que políticas genéricas não são suficientes: são necessárias auditorias independentes amplas, rastreamento até o fornecimento indireto e divulgação clara dos resultados, critérios que influenciam decisões de consumidores, investidores e financiadores.
Programa Nacional de Rastreabilidade Voluntária (PNRV): governo federal cria padrão público
O Ministério da Agricultura e Pecuária publicou a Portaria 870/2025, instituindo o Programa Nacional de Rastreabilidade Voluntária (PNRV) como parte estruturante da Plataforma AgroBrasil+ Sustentável, com o objetivo de criar um padrão público capaz de integrar sistemas governamentais e privados.
A iniciativa responde a um problema já reconhecido pelo MAPA: o Brasil opera há anos com bases de dados fragmentadas em sistemas federais, estaduais, municipais e privados que funcionam sem interoperabilidade. O PNRV busca padronizar esse ecossistema, criando uma arquitetura pública de rastreabilidade, permitindo que órgãos e empresas acessem informações coerentes e utilizáveis para suas funções legais.
A Portaria define a estrutura do programa e seus elementos essenciais, incluindo:
• Abrangência e adesão voluntária
O programa pode incluir produtos, cargas, etapas logísticas, agentes econômicos e operadores que optarem por aderir. A adesão é voluntária, e cada cadeia produtiva que ingressar assume os custos de participação.
• Sistema Integrado de Rastreabilidade e Brasil-ID/Rastro-ID
A rastreabilidade será realizada por meio do Sistema Integrado de Rastreabilidade (SIR), que incorpora padrões do Brasil-ID (também chamado Rastro-ID), responsável por identificação, autenticação e integração tecnológica entre agentes públicos e privados.
• Responsabilidades da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR)
A SDR passa a ser responsável por implementar e coordenar o programa; realizar o chamamento público para selecionar o operador nacional do sistema; promover a integração entre sistemas e validar tecnologias; estabelecer protocolos de auditoria, atualização e níveis de acesso.
• Requisitos técnicos e de governança
O operador escolhido deverá garantir o desenvolvimento contínuo da plataforma, a proteção de dados e conformidade com legislações vigentes, as trilhas de auditoria, as atualizações permanentes e o armazenamento das informações pelo período mínimo de cinco anos.
A primeira fase será pela cadeia de fertilizantes, com pilotos no Mato Grosso, rastreando granéis vegetais destinados à exportação pelos portos do Rio de Janeiro e Santos, em parceria com a Rumo Logística, Associação Nacional de Operadores Logísticos (ABOL) e Portos do Rio.
A escolha da cadeia logística como ponto de partida reforça a estratégia do MAPA de organizar rotas e fluxos antes de avançar sobre cadeias animais, como a bovina.
Mato Grosso aprova Política de Sustentabilidade da Pecuária (PL 1145/2025)
A Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovou o PL 1145/2025, que institui a Política de Sustentabilidade da Cadeia Produtiva da Pecuária Bovina e Bubalina do estado. A votação acatou o Substitutivo Integral nº 02, apresentado pela Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Recursos Minerais e Direitos dos Animais Domésticos de Companhia, rejeitando o substitutivo anterior e as emendas apresentadas.
O texto aprovado estabelece um marco legal para organizar a cadeia pecuária em torno de critérios de sustentabilidade econômica, social e ambiental. Segundo a redação final, a política deve orientar ações voltadas à qualidade de vida da população, segurança alimentar, conservação da biodiversidade, desenvolvimento regional e consolidação do estado nos mercados nacional e internacional. Essa abordagem está alinhada ao projeto enviado originalmente pelo Executivo, que justificou a medida como parte da estratégia estadual para reduzir o desmatamento, fortalecer a conformidade socioambiental da produção e responder às demandas crescentes de mercado.
A estrutura da política se apoia em três instrumentos principais: o Programa Passaporte Verde, o Programa de Reinserção e Monitoramento (PREM) e o Programa Carne de Mato Grosso.
A governança da política ficará sob responsabilidade de um Comitê Gestor composto por representantes do governo estadual e do setor produtivo, incluindo SEMA, SEDEC, INDEA, FAMATO, ACRIMAT, FIEMT, SINDIFRIGO e outras entidades previstas no substitutivo. A execução dos programas é atribuída ao Instituto Mato-Grossense da Carne (IMAC), que deverá estruturar e operar sistemas de verificação, monitoramento e certificação. Para viabilizar essas ações, o PL autoriza o estado a instituir mecanismos de apoio financeiro, inclusive por meio de fundos públicos e contribuições privadas vinculadas à cadeia produtiva.
O projeto também reforça o papel do INDEA/MT na rastreabilidade sanitária, estabelecendo que a identificação individual de bovinos e bubalinos é de uso obrigatório no território estadual e que o órgão será responsável por definir normas, procedimentos e requisitos técnicos para implementação da rastreabilidade animal. A legislação prevê ainda que, após regulamentação, propriedades de menor porte poderão receber apoio específico na aquisição dos elementos de identificação.
Com a aprovação pela Assembleia Legislativa, o PL segue agora para sanção do Governo do Estado, etapa final para que a política entre em vigor e comece a ser regulamentada.




